Sunday, September 30, 2012

LEMBRAS-TE DE MIM?


Ontem fui, como costumo fazer todos os sábados, comprar o “Nouvel Observateur” depois do jantar – uma prática que irrita um pouco o meu progenitor, que considera aquele periódico um indesejável agente do PS francês em sua casa (nem o alegar que é a revista de atualidade política francesa mais barata o demove, pois contra-argumenta logo que, se necessário, fornece a verba necessária para se passar a adquirir um seu congénere menos extremado), e que olha de soslaio sempre que o estamos a ler ou citamos os artigos que por lá vamos encontrando (e como todos nós passamos parte dos nossos períodos em comum a perguntar “já leu isto?”, “concorda com aquilo?”, “viu aquela burrice publicada em X?”, é inevitável que as matérias do “Courier” venham, de vez em quando, à baila), apesar de eu desconfiar seriamente que passa sempre os olhos, discretamente, pelas suas páginas.
Pois bem, tornava eu ao domicílio já de “Nouvel Obs” enrolado debaixo do braço, percorrendo os escassos metros que separam a nossa casa do Dolce Vita, quando, na rotunda, sob o olhar das palmeiras que por lá abundam, e apesar de ir de auscultadores, ouço um
- Lembras-te de mim?
E aparece-me, sem eu estar à espera, uma figura franzina e sem cor (ou talvez cor de rato, o que vai dar basicamente ao mesmo), de pele baça e dentes pouco saudáveis, onde eu reconheci uma cara outrora bastante mais sadia e que, há muito, vinha sendo consumida de forma avassaladora por práticas de consumo digamos que… menos recomendáveis.
- Lembras-te de mim? (repetiu)
- Hummm… não sei… (menti eu, que me recordava perfeitamente do meu inesperado interlocutor, apesar do seu semblante cadavérico e pose suplicante; era um dos habitués do horrível “Samambaia”, um dos da camarilha de rapazes e raparigas da minha geração que preferiram – desculpem lá se soa a falso moralismo, mas é o que é – gastar a vida entre mandrianço e drogas, em vez de enfrentarem outros desafios, talvez mais difíceis, mas certamente não tão evidentemente destrutivos).
- Lembras-te sim – teimava ele (cheio de razão, aliás. Porque razão não me havia eu de lembrar dele? Coimbra não é assim tão grande, e eu vejo-o há anos e anos várias vezes por mês) – Eu sou do bairro.
E, para evitar quaisquer outras hesitações da minha parte, como que buscando um argumento a favor do facto de que até os meus pais conhecia, continuava:
- O teu pai trabalhava na DREC, e a tua mãe é uma senhora de cabelo branco (enfim, esta parte era uma bela treta: jamais o meu Pai trabalhou em tal sítio, e a minha Mãe, que aliás é loura, ficaria certamente irritada por ser definida como “senhora de cabelo branco”, mesmo sendo por quem era).
Já farto daquela tentativa de reconhecimento (e farto de saber que ele tinha pleníssima noção de que eu sabia perfeitamente de quem se tratava), achei por bem atalhar:
- Ah… sim. Já estou a ver... (Aqui embatuquei, o que é raro em mim, que sou uma gralha faladora. O meu dilema era: não lhe vou perguntar “Tudo bem?”, pois, pelo aspeto dele – e por ele estar a falar comigo, coisa que NUNCA tinha feito e eu estava convicto de que JAMAIS faria – isso soaria a terrível ironia; mas também não lhe queria dizer nada que, de qualquer modo, o levasse a pensar que desejava manter aquele diálogo desconfortável e inusitado. Para mais, estava de ressaca de enxaqueca, pelo que de “faro” apuradíssimo, e o rapaz não cheirava propriamente a rosas…).
- Ainda bem (disse-me ele). Desculpa estar a chatear-te (Não desculpo NADA, pensei eu! Odiar-te-ei até me lembrar deste episódio!), mas preciso mesmo da tua ajuda.
(Ainda me passou pela cabeça responder: “Azar! Não tenho erva comigo” – mas isso seria não só uma cretinice, como uma provocação estúpida, cruel e inútil, e, novamente, um possível incitamento ao diálogo; isto para além de ser muito improvável que alguém, mesmo que desesperado por uns tostões para uma dose, achasse que eu tinha qualquer coisa do género nas algibeiras).
- Ah… (foi o máximo que consegui responder)
- Sim, sim… tens de me ajudar.
E, rebolando uns olhos cheios de desespero, daquele desespero que nos leva, em plena Solum, no quartel-general blindado do tipo que conhecemos de vista mas com quem jamais trocámos uma palavra, e que sabemos que não vai com a nossa cara e com o nosso modo de vida, a interpelar esse mesmo tipo e a cravar-lhe uns trocos, continuou, atabalhoado e frouxo:
- Tens alguns cêntimos que me emprestes…?
Eu, já a sentir-me indignado e a ver a minha magra bolsa aliviada em prol de um palerma que suspirava por mais uma dose, ainda tentei replicar:
- Sabes, não tenho nada. Fui comprar a revista (e esgrimia o “Nouvel Obs”, na esperança, que já calculava vã, de assim o demover) e gastei o que tinha.
- Não preciso de muito – persistia ele. Uns cêntimos, 50… olha, 70 cêntimos.., para ir comprar papo-secos ao “Dolce Vita”. Tenho mesmo de ir comprar papo-secos, e só há papo-secos no Dolce-Vita. Não, não é isso… há papo-secos em todo o lado, mas no Dolce Vita ainda há agora… Bom, quero dizer que só  Dolce Vita é que está aberto. E eu tenho de ir lá, tenho de ir lá depressa, senão fecha, e não posso ficar sem os papo-secos!...
Bom… não vou cair na tentação de explorar a analogia “papo-seco”/dose. Na verdade, fiquei logo cansado daquele arrazoado desconexo e desesperado. Apetecia-me fechar os olhos e esperar que, ao reabri-los, aquele tipo a desfazer-se desaparecesse da minha amada Solum, da minha vida, e me deixasse espreitar para o “Nouvel Obs” a ouvir o que estava a ouvir e a pensar nos meus brâmanes católicos e suas tropelias jurídicas.
O que fazer?
Se recusasse os 70 cêntimos, ele iria atazanar-me até me conseguir arrancar o que quer que fosse, nem que se tratasse de uma mísera moeda de 20. E eu teria de suportar um pouco mais o seu cheiro, a sua presença incómoda e a sua decadência. Não queria aquilo, nem ali, nem mais um segundo.
Se, por outro lado, lhos desse, o que me garantia que ele não me passava a tentar cravar dinheiro noutras alturas? E o meu sangue Mathias borbulhava já na iminência de me desfazer, a contragosto, de dinheiro que não me iria trazer nenhuma mais-valia ou felicidade.
Cedi ao imediatismo, e, apesar de me custar horrores despedir-me da minha moeda (uma daquelas que, por mais que trabalhe, cada vez são mais escassas na minha carteira), lá lhe dei um euro. E quando lhe ia dizer:
- Mas olha que é tudo o que tenho, não adianta vir pedir mais
já ele se tinha posto a andar, tão depressa como aparecera.
Vi-me, é certo, livre daquela presença incómoda. Mas fiquei com a noite estragada. Não era tanto o euro (bom, TAMBÉM era o euro, mas não só), mas sim o desconforto que ficava no seu lugar, a pesar-me não na carteira, mas na cabeça. Pactuara com o que não concordava, tivera de aturar aquele encontro deprimente e, ainda por cima, perdera dinheiro. E senti-me como se, vindo de entre as palmeiras, um duende disforme e dissonante aparecesse e, apontando para mim, naquela situação igualmente disforme e dissonante, me gritasse, fazendo um esgar boçal:
- OTÁRIO!  

Thursday, September 27, 2012

Gravatas



Hoje participei num congresso na Faculdade e, por isso, vesti-me (para não me esquecer totalmente como é) “à professor de direito” – isto é, a como, no imaginário do português comum, se deve enfarpelar um jurista: usei um fato. No entanto, deixei a gravata de lado.
Ao entrar para a sessão na qual devia intervir, uma pessoa cuja opinião prezo, perguntou-me, de forma fortuita (acho eu, que não estava à espera de tal questão), ao ver-me de botões da camisa desabotoados:
- Então, não trazes gravata?
Na altura, vários motivos levaram a que tenha dado uma resposta rápida e atabalhoada: a sessão estava a começar, a enxaqueca começava a martelar-me fortemente os neurónios, estava preocupado (como é natural) com o sucesso da minha “charla”. Enrolei meia dúzia de palavras, e matei o tema ali.
No entanto, ao voltar a pé para casa (é a vantagem do centro de Lisboa: tudo se faz maravilhosamente bem a pé, ainda que de fato), já mais aliviado da enxaqueca (abençoado almogran e quem o inventou!) e com a comunicação despachada, restabelecido com uma cafézada saldanhesca, voltei a pensar no assunto.
Porque é que não usei (ou quase nunca uso) gravata? Na verdade – confesso! – eu LEVAVA uma gravata, para o caso de tal ser absolutamente indispensável, bem arrumada na pasta do pc. Mas não contava recorrer à dita a não ser em caso de “estado de necessidade”.
Pois bem… efetivamente (não obstante a resposta esfarrapada que dei na altura, mercê de todas aquelas contingências), e apesar de não ter nada de visceral contra gravatas (gosto de inovar os nós e tudo) nem fatos, não me dá jeito usar nem um, nem outro! Eu explico-me melhor, recorrendo a uma trindade de motivos:
Por um lado, eu sou um rapaz que, sobretudo, anda. Quando posso, vou a pé a todo o lado, e gosto muito de o fazer (também ajuda não ser o melhor condutor do universo…). É a andar que me ocorrem as melhores ideias para artigos e rabiscos, é a andar que vou vendo o que se passa em meu redor (gosto particularmente de tomar atenção aos detalhes), é a andar que consigo manter as minhas rotinas: tomar café no mesmo sítio, comprar o jornal no quiosque de sempre, etc. Ora, experimentem andar de fato. Não é forçosamente mau, mas dá muito menos jeito do que com um par de sapatilhas.
Por outro lado, eu sou um rapaz que – por muito que o tente evitar – anda sempre carregado de tralha. Ou é a pasta com os cadernos das aulas e os relatórios dos alunos (daquelas para pôr a tiracolo, que NÃO ficam bem com fato), ou a mochila com o pc e os papéis da tese, ou a raquete, tudo sempre à mistura com livros e papelada vária, somando vários quilos que vou alegre e já indiferentemente transportando comigo ao longo das minhas caminhadas diárias.
Por fim, eu sou um rapaz que gosta de bibliotecas, alfarrabistas e papéis velhos. Ah! E de antiquários. E não resisto a entrar e vasculhar bem vasculhado qualquer um com que me depare ao longo – lá está – das minhas peregrinações pedestres. Mais ainda: como gosto muito de desenhar, ando geralmente de moleskine no bolso, para rabiscar o que parecer mais interessante, quer seja altar barroco, casa moderna, perna de cadeira ou turista de passagem. Experimentem fazer isto de fato e gravata… eu sei, ficaria mesmo ridículo.
Assim, acho que, umas tantas horas depois, cheguei a uma resposta minimamente satisfatória. Eu não uso gravata – nem fato, nem sapatos brilhantes – quotidianamente pura e simplesmente porque tal seria tão desfasado com as minhas rotinas como andar vestido de cabaia (a paixão por Goa levar-me-ia a tais extremos?) ou langotim pelas ruas de Lisboa, ou de fato de treino Coimbra fora. Não uso por não gostar, mas apenas porque não funciona comigo, com a minha maneira de viver. Mal cheguei a casa, desenovelei a gravata e tirei o fato. Vesti-me “à Luís”, e foi com prazer que revi as minhas velhas e surradas sapatilhas. E lembro-me sempre de um episódio de um dos romances da minha Avó: não é por nos vestirmos de preto ou vermelho que sentimos mais falta (ou fazemos um luto mais efetivo) de alguém. Continuamos a ser os mesmos. Portanto, o Luís vestido “à Luís” é o mesmo professor de direito, amante de história e de Goa, que gosta de rabiscar, fazer genealogias e tomar café no Saldanha, ir treinar ténis duas vezes por semana e, por vezes, muito raramente, se dissimula atrás da aparentemente séria armadura de um fato, com ou sem gravata.

Thursday, September 13, 2012

O GRITO DA MULA-SEM-CABEÇA


Na sala dos meus Pais (que, antes, já foi a sala dos meus Avós), resguardada por uma velha moldura de Macau, uma família de ar solene e atavios pouco adequados ao calor tropical olha, desde a S. Paulo de 1905 e dos ecos dos engenhos nordestinos, a sua descendência que, ano após ano, vai crescendo e evoluindo. Todos nós sabemos que a senhora que está sentada com o seu filho varão mais velho ao colo, espartilhada e com ar de poucos amigos, é a Avó da Avó, a quem chamamos Avó Joaninha, e de quem conhecemos dúzias de histórias e historietas, que a sua neta – e minha Avó – se encarregou de perpetuar, quer por via oral, quer em algumas anotações esparsas. A Avó Joaninha foi uma influência da maior importância na vida e no imaginário da sua neta primogénita (que, por sua vez, foi, anos depois, minha Avó) e transmitiu-lhe uma tal aura de misterioso encantamento relativamente ao seu Brasil natal, aos engenhos do Ceará, à vida patriarcal dos vaidosos Cavalcanti e Albuquerques quinhentões dos quais descendia, às idas a Fortaleza, aos episódios picarescos e pitorescos das elites brasileiras do século XIX que a minha Avó, que jamais visitou a América Latina, sempre manteve uma simpatia especial por aquela parcela do mundo lusófono. E, graças à Avó (e, afinal, à Avó da Avó) todos nós mantemos essa afinidade difícil de definir com o Brasil, a qual vale, creio eu, bem mais do que quaisquer lingotes de ouro que os Cavalcantis tivessem entesourado. Ainda hoje a minha mana, como rapariga mais velha da sua geração desta velha linhagem que começou brasileira mas agora já é lusitana, conserva, desde os seus quinze anos, o anel que, há muito, passa de mãe para filha quando perfazem aquela idade. É, com toda a probabilidade, a mais modesta das muitas e valiosas joias que Joaninha possuiu – mas não será a mais simbólica, desde logo por rescender a essa herança tropical?
Quando penso na Avó Joaninha, associo-a, naturalmente, às histórias difusas que a minha própria Avó contava sobre ela. Nascera num engenho, o pai morrera cedo, a mãe voltara a casar com outro senhor de engenho. A madrinha morava em Fortaleza. Houve um período de secas muito grave e as vacas do engenho vinham para redor da casa grande morrer de sede. Teve apenas um irmão inteiro (que, como era de bom tom naquela época, se licenciou em direito no Rio) mas muitos meios-irmãos e irmãs. A sua mãe ensinava os “empregados” (um suave eufemismo para escravos?) a ler e a escrever e tinha uma verdadeira fúria anti iliteracia. Era aparentada (sobrinha?) de um historiador muito famoso: Capristano de Abreu. Quando casou, a família achou o apelido do marido, Freire da Cruz, um tanto banal, e gozava dizendo Cruzes, vai casar com um Cruz! Teve uma tia que casou, aos 13 anos, com um homem muito mais velho que, por sua vez, era seu tio. E várias coisas do género. E, quando ouvíamos a Avó, imaginávamos esses velhos casarões do Brasil de cariz colonial, onde havia muitas vacas, muitos empregados, muitos Cavalcantis e uma menina chamada Joaninha em torno da qual todo aquele mundo distante e fantástico parecia girar. E – que curioso! – a tal menina ainda era da nossa família, porque era Avó da Avó! Era interessante imaginar como seriam essas pessoas (a Avó Joaninha era fácil, porque subsistem várias fotos) que tinham um nomes muito mais doces (Joaninha, Avó Dom-Dom, Jacy, Vicentinha…) do que os austeros que usavam as antepassadas portuguesas, entre os quais se encontram “pérolas” como Petronila, Clara Augusta, Maria Francisca de Sales, Maximina Júlia, Umbelina Leopoldina, Doroteia Eufrásia Narcisa (eu juro que tenho uma 7ª avó chamada Doroteia Eufrásia Narcisa Teixeira Monteiro de Carvalho, a qual tinha uma cunhada que dava pelo nome próprio de Maria Madalena do Amor Divino!!), Telésfora, Úrsula Rosa Tomásia and so long.
Como literata e dedicada herdeira e cultora desse legado “simbólico” (digamos assim) brasileiro, a minha Avó, filha da sua geração, dispunha, na sua rica biblioteca, da maior parte das obras de Gilberto Freyre. Muitos anos mais tarde, quando eu – que acabei por dedicar parte dos meus estudos ao direito colonial – peguei nelas para as estudar, vieram-me (e ainda vêm, nas muitas ocasiões em que as consulto) à memória as histórias da minha antepassada Joaninha e seus familiares nas imensidões do Nordeste. Confesso que, até hoje, ainda não percebi se foi, de alguma forma, a leitura das obras de Freyre que acabou por condicionar a visão da minha Avó relativamente ao Nordeste senhorial (e que esta, depois, a acabou por transmitir mesclada com os dados relativos à vida da sua própria avó); se Freyre plasmou de um modo tão notável as dinâmicas daquelas gentes e daquelas paragens que, de facto, de adequam bastante convincentemente ao caso particular da família da Avó Joaninha; ou, ainda, se não houve, graças ao talento literário da minha Avó, uma mescla de ambos – a qual, a ter existido, acrescente-se, resultou particularmente feliz. Por isso, ainda hoje, quando percorro as obras de Freyre, sinto em muitas delas uma suave familiaridade que (gosto de acreditar) constitui um importante auxílio nos meus trabalhos de pesquisa. Exploramos melhor aquilo com que mantemos uma qualquer ligação ou afinidade, por muito ténue (ou muito negativa: posso aprofundar um assunto porque me causa especial repulsa, seja para a combater, seja para demonstrar o quão repugnante é) que seja. E, graças a esta mescla Avó Joaninha/Avó do Luís/Gilberto Freyre, o mundo das Casas Grandes, embora distante temporal e geograficamente, ainda é, de alguma forma, inteligível, mesmo que sabendo (e eu sei, naturalmente) que se trata somente de  uma visão da questão, uma das muitas possíveis. Mais ainda: que se trata de uma visão a partir do ângulo dos (poucos) privilegiados do tempo. Mas… afinal, eu estudo elites coloniais, não estudo? ;)
Outro dos autores que – não tão paradoxalmente quanto possa parecer – me ajudou a compreender melhor este mundo de engenhos, roças, criadagem e Cavalcantis, tudo repassado por uma nostalgia feliz que a Avó Joaninha, certamente saudosa da sua infância, se encarregou de transmitir à neta, foi Monteiro Lobato, sobretudo através do conjunto das suas obras relativas à vida no que ficou para a posteridade conhecido pelo nome genérico de sítio do Pica-pau Amarelo. Curiosamente, Monteiro Lobato, também ele descendente das elites coloniais do velho Brasil, terá fantasiosamente recriado as boas recordações que conservara do engenho do seu avô. Não se notam aqui algumas semelhanças com a história da minha própria família? Certamente. Ora, relativamente ao Sítio e aos seus habitantes mais ou menos habituais (existem, como todos sabemos, os tendencialmente fixos e os que só esporadicamente surgem), tive a sorte de beneficiar de um duplo-contacto: por um lado, filho da minha geração, adorava ver os episódios na TV (há uns tempos descobri, no youtube, um vídeo do ex-Pedrinho na atualidade, pai de filhos e creio que vendedor, que me pareceu estranhíssimo! LOL); por outro, neto de uma Avó que apreciava e “colecionava” livros em grandes quantidades, pude ler os originais de Monteiro Lobato. Essa foi, como referi, uma outra forma de entrar em contacto com a costela brasileira advinda da Avó Joaninha, e de encarar, sem estranhezas de maior, os relatos de um Brasil profundo que, graças a toda esta fusão, sempre me pareceu ser um lugar extremamente aprazível, soalheiro e, de alguma forma, familiar.
Tudo isto teve consequências, sendo uma delas a amálgama que, inadvertidamente, faço de Freyre, Monteiro Lobato e dos relatos relativamente à minha própria família. É verdade que eu sei bem que Dona Benta não é a Avó Dom-Dom, mas há traços de uma e outra que talvez confunda; bem como que o velho coronel Encerrabodes de Oliveira (de quem Dona Benta há tanto enviuvara) não é o Avô Pedro Galvão d’Albuquerque (pai da Avó Joaninha) ou os senhores de engenho imortalizados por Freyre: mas todos se confundem, em maior ou menor medida, no meu imaginário. E Narizinho? Será uma Joaninha mais moderna, ainda que também já remota? E a Tia Nastácia? Uma das empregadas de que a Avó Joaninha falava? Outro aspeto interessante é a própria casa do sítio: para mim, não é nada como a da série. Tem grandes balcões, é certo, mas aproxima-se muito mais dos casarões descritos e esboçados por Freyre. E o sítio é, em simultâneo, um engenho, onde, ao lado do Quindim, mais afastadas, há vacas e, quem sabe, uma fabriqueta de extração de açúcar, pela qual os sacis passam depois do anoitecer. Mas não convém ir lá a desoras, caso contrário podemos ter um encontro indesejável com a mula-sem-cabeça!
Foi, por tudo isto, que me causou profundo desagrado uma notícia de que a minha colega Núbia (brasileira a residir em Portugal) me deu conta há um par de dias: o STF brasileiro equaciona retirar do lote de leituras escolares do ensino público as obras de Monteiro Lobato, sob acusação de as mesmas serem racistas! Acredito que o STF agirá da forma mais correta possível, e que dispõe de bons argumentos para analisar a questão. E sei, também, que o espantado desagrado que esta notícia me causou se deve à mescla que acima referi: ao desaprovar a mensagem do Sítio, estão também a reprovar a minha própria história (ainda que com contornos mitificados) familiar? Disso, confesso, não gosto mesmo nada!
Creio que se devem ter em conta duas ideias sobre este assunto. Por um lado, que – mesmo que se considere racista (e HOUVE racismo, e HOUVE escravatura, e não é escondendo-os que eles deixam de ter existido), o que, pessoalmente, acho MUITO discutível – a obra de Monteiro Lobato é, naturalmente, uma obra datada. E é isso que deve ser dito. A história explica-se, não se omite nem se doura. Foi assim, porque era assim que as pessoas agiam e pensavam. Hoje reprovamos, mas temos de ter a humildade de pensar que a nossa maneira de ver o mundo, ainda que acreditemos na sua superioridade face às demais, não é a única. Se quisermos esconder a história, se quisermos ser “politicamente corretos” – e, sejamos francos, se quisermos ser mais “europeus”, ou “norte americanos”, nem que para isso tenhamos de sacrificar traços fundamentais do nosso passado (que, por vezes, consideramos ser vergonhosa e provincianamente tropical-kitsch) – o resultado desembocará em asneira. Gente sem referências (goste ou não goste delas) é gente desajustada, e gente desajustada é (tendencialmente) gente infeliz (desde logo porque é ignorante, e a ignorância é causa de tenebrosa infelicidade, sobretudo quando não nos damos conta dela!). Que bom governante pode desejar tal coisa?
Por outro lado, creio não conhecer ninguém que considere as obras de Monteiro Lobato racistas. Ok, ok, eu lembro-me que Dona Benta falava na “sua” Nastácia, e que era esta quem fazia todos os trabalhos pesados, bem como que o Tio Barnabé fora um escravo que agora morava numa casinha (seria um vestígio de senzala?) e não na casa grande. Mas todos os leitores do Sítio adoram a Ti Nastácia e o Tio Barnabé, tanto quanto a avó Dona Benta e, certamente, muito mais do que os vestígios já arqueológicos da memória do velho Coronel Encerrabodes, dos outros vizinhos também Coronéis, do Visconde (não representa ele um titular branco?) cheio de si e da mãe de Pedrinho, Dona Tonica, que jamais põe o pé no sítio! Nunca, das muitas vezes que li os originais e vi a série, tal me passou pela cabeça. Mas, e mesmo que se considere desconfortável a presença destes personagens,
Afastar o nosso passado é uma coisa dramática, é perdermos uma rede que, de alguma forma, ajudou a que fôssemos como somos, e nos ajuda a compreendermo-nos melhor. Se, de rajada, me dissessem “esquece tudo sobre a Avó Joaninha e esse pretenso legado brasileiro que a tua Avó ajudou a conservar, pois rescende a um luso-tropicalismo inadmissível”, eu, certamente, não o conseguiria fazer. E, caso (e era improvável) o tentasse fazer, sentir-me-ia sempre meio coxo.
Ressalvadas as devidas distâncias, não se passará algo idêntico a todos aqueles (e, note-se, não falo só de brasileiros) a quem se vete a leitura das obras de Monteiro Lobato, ao invés de se procurar explicá-las convenientemente, por se considerarem “incómodas”?
Por outro lado, e na verdade, eu acho é que os textos de Monteiro Lobato (nomeadamente os relativos ao Pica-pau Amarelo) constituem verdadeiras lições de vida. Quanta ironia e verdade (ainda hoje, é preciso é compreender!) há, por exemplo, na vã fatuidade do Visconde, ou no facto de a Emília, para ser marquesa à força, casar com Rabicó? Quantos conhecemos como Quindim: da aparência bruta e grosseira, mas caráter dócil e boas pessoas? Quantas cucas não temos nós nas nossas vidas? Não são elas os temores que procuramos vencer? E quantos sacis? Não são eles quem nos levam a tentar ousar, como acontecia com Pedrinho? E a mula-sem-cabeça? Não é ela uma perfeita ilustração dos problemas grandes, e de difícil solução, que sabemos existir e que, de vez em quando, para não nos esquecermos deles (como se isso fosse possível!) dão um arzinho da sua graça? E não é bom termos uma família que se preocupa e, quando necessário, ralha e critica mas nos ampara nos nossos projetos como Dona Benta, Ti Nastácia e Tio Barnabé? E que ainda por cima nos recompensa?

Faço votos para que o STF brasileiro não opte pelo afastamento deste precioso tesouro literário. E que, caso sequer pondere tal hipótese, ecoe, vindo desde os sertões e desde os velhos engenhos – terras da Avó Joaninha, de Freyre, de Monteiro Lobato, de Dona Benta e de Tia Nastácia, da Narizinho e do Pedrinho –, passando pelos salões das casas grandes e pelos miseráveis vestígios das senzalas, pondo em alerta um mundo ao qual todos tanto devemos e que é fundamental para a compreensão do espaço lusófono, um som impossível: que o grito da mula-sem-cabeça nos faça despertar para o facto de a nossa especificidade ser a nossa riqueza, e que se avança compreendendo, não afastando ou escondendo.

Tuesday, September 04, 2012

MARLENE NA JUNTA


- Marlene, querida, há que tempos que não te via! (Schmack, schmack, duas sonoras beijocadelas a acompanhar a saudade sentida!). Tinha perguntado por ti à Edite, e ela também não sabia nada… pensámos até em passar lá por casa, mas, sabes como é, com o Quim e os miúdos…
- Claro, fofa! Nós também saímos assim de repente, deu-lhe na veneta ao Zé Rafael, pegámos no Afonso Rubim e fomos até ao Algarve. Amei!
- Ih, Jesus, ao Algarve! Isso é muito longe, aos anos que não passo da Vieira (de Leiria, subentenda-se)…
- Foram lá este ano?
- Olha, nem isso. A minha sogra está muito mal, a perna direita já não mexe, e no posto de saúde dizem que não há nada a fazer. Estivemos lá hoje, cedinho…
- E foi bem bom, fofa! Como arranjaram senha? (volta-se para o filho, que brinca deitado num banco ao lado de um par de idosos de aparência centenária) Afonso Rubim! Se chateias as pessoas é certo que apanhas! E, depois, nada de praia!
(Afonso Rubim ergue-se indignado)
- Mas, mãe, eu estava aqui a falar com ela…
- Não é ela, é “esta senhora”!
- Com esta senhora…
- “Senhora”!? Que disparate! Isso é lá maneira de tratar a Zefa! Não te lembras da Zefa, Afonso Rubim? A tia da Nanda, que mora ao lado do avô?
- Não…. (replica, quase num murmúrio, o miúdo)
- A que te dava tacinhas de geleia, Afonso, filho!
- Ah! A velha dos gatos!
- Afonso Rubim!
- A senhora velha dos gatos? (Afonso Rubim estava cada vez mais confuso!)
- A ZEFA! E, Zefa, como é que está tudo? Está bem rijinha, pelo que vejo. Nem se lhe notam os anos!
(Zefa/senhora Zefa/ velha dos gatos retorque, num tom baixo mas cantante)
- Ai filha, bem, bem, já nunca me sinto. Mas venho quase todos os dias aqui passar um migalhinho da tarde, e sempre me vou consolando.
- Então não tem senha? Não vem nem aos correios nem ao balcão da junta?
- Fazer o quê? Hoje não é dia de levantar a pensão. Olha, passo por cá para uma conversita com a Marisa ali da biblioteca…
- Mãe, o que é uma biblioteca? (atira Afonso Rubim)
- É uma sala com muitos livros e um computador (deliciosa adaptação à modernidade! Quando o escriba era pequeno, era apenas uma sala com muitos livros)
- Computador? (repete Afonso Rubim, a quem a conversa começou a interessar)
- Sim, filho, mas acho que não tem jogos. Mas vai lá, vai lá à Marisa perguntar-lhe. (Afonso Rubim abandona a sala de espera num ápice)
- Belo garoto (comenta Zefa, nas costas do filho de Marlene). O teu Fonsinho é o Zé Rafael por uma pena!
- Faz-me muita companhia, coitadinho (admite Marlene), e está tão nervoso com a escola! Vai entrar agora para o primeiro ano!
- Não te apoquentes, filha (Guida volta a entrar na conversa, demonstrando, pelo semblante grave, a muita experiência que tem no assunto, mercê de três crianças todas já em idade escolar). Vais ver… ele entra, e nem se volta. Nem um “ai”, nem um “tchau”, é um ver-se-te havias para ir ter com os outros cachopos!
- Nem um “tchau”? (Sente-se uma ligeira tremura na voz de Marlene. Achará que um bom filho deverá ensaiar uma entrada escolar envolta em maior dramatismo?) Nem um beijo na mãe?
- Nada, filha! Mete-se a correr!
- Ai, fofa, que isso vai custar-me…
(Afonso Rubim regressa à sala de espera, e vai ter com a progenitora)
- Mãe, a Marisa não tem jogos mas disse-me que o filho dela também vai para a escola! E a tua senha? Estás quase?
- Primeiro está a Guida! O que vens cá fazer, fofa?
- Olha, várias coisas: dar um beijinho à Rute, que é o primeiro dia que está cá a trabalhar, em substituição da Lara, que está de bebé, mandar um fax e entregar esta bolsa que deixaram lá no centro há um ror de tempo Sabes de quem é? (mostra um velho porta-moedas) Vim com o Quim, que está ali na internet a ver se ela lhe dá uma guia ou lá que diabo é para cortar uns pinheiros. E tu?
- Vou mandar um secador para a minha irmã, na Suíça. Já está um pouco usado, mas funciona que é uma maravilha! E sempre se poupa…
- Ah, e agora têm aqui umas caixas que servem bem para isso. Sentes saudades de lá?
- Olha, às vezes. E o Afonso Rubim fala muito nos primos! E já quase não percebe nada de outras línguas que não seja o português, esqueceu tudo… Também, era muito miúdo quando viemos para cá. Mas vamos lá no Natal. É tão perto!
- E têm casa, e tudo, é só mesmo a viagem…
- É isso! E olha que me parece mais perto e fácil do que ir a Lisboa… essa sim, é longe!
- E cara!
- Cara, cara, cara por causa deste tempo! Desta crise!
- É a troika, já sabes (e percebe-se bem que Guida não sabe ela própria muito bem o que é a troika…)
- Qual troika, fofa?! Sei lá eu dessa troika, e onde está ela? A culpa é da câmara da Figueira! Esses sim, tudo comeram, e nada deixaram ao povo!
(o número 27 piscou no ecrã, e Guida entrou na salinha que serve de posto de correios e balcão de atendimento da junta. Beijou repenicadamente Rute, e encetaram logo uma conversa animada. Afinal, a bolsa era da madrinha da nova funcionária, que a reconheceu ato imediato)
Eu era o número 30. Á minha frente, um velhote ainda vinha buscar uns dinheiros; depois de mim, esperavam pelo menos mais cinco pessoas. Estamos todos a menos de dez quilómetros da Figueira, a três do mar, de uma praia conhecida por todos os conimbricenses, Q. Mais: estamos numa vila relativamente populosa e longe de ser miserável. Estamos na junta, onde as pessoas se encontram, vêm matar a solidão conversando com a(s) Marisa(s), trocam impressões, acedem aos serviços dos CTT, mantêm, enfim, ligações com um mundo cujas dimensões não têm forçosamente de coincidir com as do nosso. Um mundo onde, política e institucionalmente, o mais longe que muitos conseguem vislumbrar é a vizinha câmara da Figueira, sendo a troika uma entidade distante e difusa, de contornos vagos e, por isso, menos temível (o que não me deixou de lembrar uma historieta que remonta já aos anos 20/30 do século passado quando o governador civil da Guarda se deslocou a um lugarejo perdido na Serra, onde se ia proceder à inauguração dos primeiros focos de luz elétrica. Nessa ocasião, uma velha criada apanhou uma das deceções da sua longa vida: afinal, essa figura mítica, distante e digna de todo o respeito que era, para ela e para tantos, o dito governador, não passava de um simples homem de carne e osso, que andava, falava e comia como todos os mortais!). Um mundo onde a Suíça – terra para onde se emigra e onde se deixam parentes e amigos – se sente mais próxima do que Lisboa e o Algarve. Um mundo que não é pior nem melhor, apenas diferente. Mas um mundo onde a junta de freguesia, em cuja pequena sala de entrada todos nos acotovelávamos, constitui inegavelmente, apesar das limitações de que enferma e dos vícios de que eventualmente padeça, um importantíssimo polo agregador. Zefas, Laras, Marlenes, Guidas, Afonsos Rubins, Quins (os nomes são falsos, as historietas não)… e Luíses (que também precisam dela quando estão de férias naquelas paragens) percebem a importância da manutenção de muitas destas juntas (não todas, atenção, mas, certamente, de muitas), sobretudo as das zonas mais rurais.
Ontem, Sampaio da Nóvoa sublinhava, na RTP, uma evidência que tendemos a constantemente esquecer: não há um só Portugal, mas muitos portugais. A tentação de nivelar todo o nosso pequeno território sem olhar a especificidades é grande, não o nego, e parece constituir um remédio eficaz a curto prazo. Mas, não nos iludamos: a médio prazo, não trará consequências péssimas, e difíceis de sanar?
Sem catastrofismos à Medina Carreira (também o vi ontem… o que diabo estava a fazer LÁ o Pedro Lomba? O que se passa com ele?), e neste delicioso período de rentrée (de um calor abrasador, que me delicia e vivifica) procuremos, todos, ter presentes as bem sensatas palavras de António Manuel Hespanha, no mote em torno do qual se alicerça grande parte da sua investigação
“Nunca podemos avaliar um instituto jurídico descontextualizado do seu âmbito sócio-cultural e económico de aplicação”.
Substituam, se quiserem, “instituto jurídico” por “juntas de freguesia” (entre muitos outros organismos) e obteremos, assim, uma boa base para lançar mãos à obra!
Boa rentrée para os leitores destes Prazos serrazinescos, com o cheiro agradável do recomeço das aulas, do ano judicial, e de tantas outras coisas igualmente interessantes! ;)